A Tradução da Poesia Completa de Emily Dickinson: Entrevista com Adalberto Müller

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por Marcela Santos Brigida

Qualquer discussão acerca da recepção da poesia de Emily Dickinson no Brasil passa necessariamente por uma análise do longo histórico de traduções de seus poemas para o português. O primeiro tradutor de Dickinson no país foi Manuel Bandeira, que publicou na revista Para Todos traduções para os poemas “I never lost as much but twice,” (Fr39) e “I died for Beauty – but was scarce” (Fr448) em 1928. Desde então, a poeta foi traduzida numerosas vezes por nomes que incluem Cecília Meirelles, Décio Pignatari, Olívia Krähenbühl, Mário Faustino, Paulo Mendes Campos, Ana Cristina Cesar, Aíla de Oliveira Gomes, Isa Mara Lando, José Lira, Augusto de Campos, entre outros. Essas traduções foram fundamentais no sentido de consolidar a presença da poesia de Emily Dickinson no Brasil. No entanto, após um longo período contando exclusivamente com antologias que ofereciam uma seleção restrita da extensa obra da autora, o leitor lusófono enfim contará com uma tradução da poesia completa de Emily Dickinson.

Em meados de 2016, foi anunciado que Adalberto Müller estava trabalhando em um projeto de tradução integral da obra de Dickinson (que conta com quase 1800 poemas) para o português. Embora traduções da poesia completa de Dickinson já estejam disponíveis em idiomas como o alemão e o francês, este é um empreendimento inédito na língua portuguesa. Müller já havia publicado traduções de poemas de Dickinson na Revista CultEscamandro, Revista Zunai e no Suplemento Pernambuco.

Sobre o tradutor

Professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal Fluminense, Adalberto Müller é graduado e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília. Ele possui doutorado em Letras-Francês pela Universidade de São Paulo (2002) e realizou pós-doutorado (PDE-CNPq) na Universidade de Münster, além de Pós-Doutorado Sênior (CAPES) em Yale no programa de Film Studies. Publicou os livros Orson Welles. Banda de um homem só (2015, Editora Azougue) e Trem cinema: contos (2015, 7Letras), além de três livros de poesia e traduções de Francis Ponge e e.e.cmummings. Escreveu e dirigiu o curta-metragem 35mm Wenceslau E A Árvore Do Gramofone. Em 2018 foi Visiting Scholar na University at Buffalo (SUNY), no Department of English, a convite de Cristanne Miller. (adaptado do currículo lattes do pesquisador)

Com o lançamento do primeiro volume da Poesia Completa planejado ainda para este ano, conversamos com o Prof. Adalberto sobre o que podemos esperar.

Adalberto Müller. Crédito da Imagem: Manuel Müller Photography

1. Você poderia narrar um pouco da sua história com a poesia de Emily Dickinson? Como se tornou leitor, estudioso, até chegar à tradução?

Tudo começou quando eu estava em Yale em 2013 fazendo pós-doutorado e pesquisando sobre Orson Welles. E aí eu fui fazer uma visita a Amherst para conhecer a casa da Emily Dickinson. Eu já tinha lido a Emily fazia muito tempo. Em 2003 eu usei um poema dela no meu livro Enquanto velo teu sono, um livro de poesia que saiu pela 7Letras. Então fui visitar a casa/museu Emily Dickinson e tive uma espécie de momento epifânico e resolvi traduzir um poeminha que estava na entrada do museu.

A partir de 2013, eu comecei a comprar os livros dela, comprei a primeira edição do Johnson e a tradução do José Lira. E fiquei comparando, fiquei brincando de traduzir. Isso foi de 2013 para 2014 e no meio de 2014 já comecei a levar a sério. Aí conheci a edição do Franklin e comecei a traduzir. De 2014 pra 2015, eu comecei a traduzir mais ou menos metodicamente um poema por dia. Em 2015 eu me associei à Emily Dickinson International Society e fui a um congresso em Paris, um encontro da EDIS, dessa associação de estudiosos da Emily Dickinson. Lá, por acaso me botaram numa mesa junto com a Cristanne Miller. Foi uma coincidência muito grande. Eu fui apresentar um trabalho em inglês sobre a questão do ritmo, da imagem e do pensamento na poesia da Emily Dickinson, quer dizer, como essas três coisas convergem, e por acaso a Cris Miller, que é a grande estudiosa do ritmo na poesia da Emily Dickinson, gostou muito do meu trabalho e já me apresentou para todo mundo. Principalmente para a tradutora alemã, a Gunhild Kübler, que traduziu a poesia completa, e para a tradutora francesa, Claire Malroux.

A partir daí eu comecei a realmente levar a sério e comecei a traduzir uma média de dois poemas por dia. Quer dizer, de 2015, 2016 até hoje, eu venho fazendo isso diariamente, trabalhando cerca de 5 horas por dia na tradução do que até então não era para mim, mas veio a se tornar a tradução de toda a poesia. Eu decidi que não era suficiente ficar selecionando poemas e sim (e isso foi um conselho da Gunhild Kübler) traduzir tudo, do começo ao fim.

2. Você diria que tem alguma forma de filiação poética com os poetas que escolhe traduzir?

Diretamente, não. Não da forma como eu me vejo assim dentro de uma tradição que passa por Bandeira, Cabral, Manoel de Barros, que são as minhas grandes referências na poesia. Mas indiretamente, sim. Os autores que eu traduzi são todos autores muito difíceis, muito complexos na forma. São autores que trabalham com elipses, com inversões sintáticas, que trabalham com a sintaxe em particular. E trabalham sobretudo com uma espécie de condensação, com essa ideia da poesia como uma coisa condensada. O principal deles que eu traduzi foi o E. E. Cummings que era um poeta muito influenciado pela Emily Dickinson. A tradução que eu fiz foi com Maurício Cardozo, Marcelo Sandmann e Mario Domingues e se chama O Tigre de Veludo. O livro saiu pela editora da UnB e concorreu ao Jabuti, inclusive.

Outro autor que eu também acho que tem muito a ver, que também traduziu a Emily Dickinson, foi o Paul Celan, o poeta judeu de língua alemã. Ele também trabalha com essa ideia de condensação, de fragmentação e de elipses. É claro que, por outro lado, também me interessava na Dickinson uma coisa que estava me atraindo muito há algum tempo atrás e que hoje me interessa menos em função dessas eleições horrorosas, esse momento horroroso que a gente está vivendo no Brasil. Eu estava muito interessado na questão da mística na poesia. Essa questão do transcendental. Por isso também que eu estava lendo os transcendentalistas americanos, Emerson e Melville, particularmente. Um pouco o Thoreau também, claro, sempre. E aí a Emily se enquadrava nisso.

3. Como você avalia a relação entre o público leitor brasileiro e a recepção da obra de Dickinson no país?

Isso é muito interessante porque o texto que eu estou escrevendo para o Oxford Handbook toca nessa questão. O Brasil teve um dos primeiros tradutores da Emily Dickinson, que foi o Manuel Bandeira. Isso quando pensamos nas línguas românicas, porque é difícil tratar de Japão, Ásia, ela também tem uma recepção enorme nos países de língua escandinava, nem entro nessa questão. Mas nos países de línguas românicas – francês, espanhol, português, italiano – o Manuel Bandeira foi o segundo tradutor importante. O primeiro foi o Juan Ramón Jiménez, poeta espanhol, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura. O Jiménez traduziu a Emily Dickinson em 1916. O Manuel Bandeira publicou pela primeira vez uma tradução da Dickinson em 1928. E depois inseriu Dickinson no volume de traduções que publicou. A partir daí uma série de autores, praticamente todos os grandes poetas brasileiros traduziram Emily Dickinson: Cecília Meireles, Mário Faustino, mais recentemente Augusto de Campos. Acho que sobre Augusto vou falar mais detalhadamente mais à frente, né?

O Mário Faustino a colocou dentro do paideuma dos autores, o cânone dos autores modernistas essenciais que todo poeta brasileiro deveria ler. Então depois do que o Faustino disse no Poesia-experiência, fica difícil não ler a Emily Dickinson, na verdade. Assim como fica difícil não ler o Mallarmé, o Rimbaud, o Pound, como fica difícil não ler todos aqueles poetas que o Faustino e os Concretos elencam como os pilares da modernidade, os grandes inventores da modernidade dentro da taxonomia do Pound, com a qual eu nem concordo tanto. Mas, sem dúvida, a Emily Dickinson faz parte de uma tradição já bem brasileira de recepção e de leitura de poesia.

4. Por falar em Augusto de Campos, você poderia falar um pouco sobre a importância das traduções dele para a recepção de Dickinson no Brasil?

Como eu disse, eu acho que as traduções brasileiras em geral, que se baseiam em antologias, não são muito consistentes de um ponto de vista crítico, numa compreensão crítica e textual da obra da Emily Dickinson. No entanto, a tradução do Augusto de Campos é uma exceção. É difícil julgar as traduções do Augusto de Campos nesse contexto porque eu acho que as traduções dele tem que ser pensadas dentro do contexto do próprio Augusto de Campos, dentro do contexto do significado da poesia concreta no Brasil, do que significou, porque eu acho que tem uma importância enorme. Depois de eu ter lido praticamente todas as traduções para as línguas que eu conheço (mais ou menos cinco ou seis línguas) da Emily Dickinson, eu não tenho dúvidas de que a melhor de todas as traduções, para todas as línguas, é a do Augusto de Campos.

Ele chega muito perto daquela intensidade elíptica e profunda que tem a poesia da Emily Dickinson e ele joga com todos os ritmos, com todos os metros. Quer dizer, ele adota um esquema de versificação que eu acho muito interessante, muito potente, digamos assim. E o Augusto de Campos sempre foi, para mim, uma inspiração para que eu pudesse fazer essa empreitada de traduzir e tentar traduzir toda a poesia da Emily Dickinson pensando em questões de ritmo, de prosódia, de metro, de versificação. Digamos que eu adotei um esquema de versificação, eu pensei muito nisso porque ela trabalha basicamente com o common metre, que são versos baseados no hinário protestante e ela alterna estrofes com versos de seis ou oito sílabas, então na verdade são versos iâmbicos, o trímetro e o tetrâmetro iâmbico.

O Augusto faz muito um trabalho com redondilha maior e menor. E ele usa um verso mais curto, mas elíptico, mais sintético ainda porque isso está dentro de um programa estético dele. A Ana Luísa Amaral, por exemplo, usa o decassílabo. Ela alterna o decassílabo com versos de sete sílabas. O meu verso quase sempre oscila entre um verso de oito sílabas e um verso de seis. Nem sempre eu consigo manter, mas eu dei preferência a esse padrão, digamos assim. Ao longo dos 1800 poemas, você vai ver que esse é o padrão preponderante. O verso de oito e de seis, que às vezes se transformam em sete e cinco. Então às vezes eu jogo com essas medidas e também dei muita atenção àquilo que o Augusto também faz, que é o trabalho com as rimas. E procurei manter sempre o esquema das rimas ímpares e é claro que quase sempre também pensei outras questões de prosódia, como paronomásia, as aliterações, e tudo isso. Então, para mim, as traduções da Emily que o Augusto faz, assim como as traduções que ele faz do Rilke, que eu admiro muito, acho que estão entre as traduções mais belas que ele fez. As traduções do russo também são excelentes.

O Augusto é um modelo. Acho que ele é um modelo para qualquer tradutor e ele estabelece uma forma de traduzir que eu acho que é nova, original e única, que não pode ser comparada. O que eu estou fazendo é totalmente diferente do que o Augusto fez, o meu trabalho, como eu disse, além de ser um trabalho criativo, é um trabalho crítico, um trabalho acadêmico também. Então acho que o meu trabalho não vai invalidar o trabalho que o Augusto fez de maneira alguma, acho que uma coisa complementa a outra e acho que o livro do Augusto sempre vai continuar circulando porque é um livro do Augusto de Campos. A obra do Augusto de Campos inclui as traduções, elas são parte da obra dele e espero que em algum momento se publique a totalidade das traduções dele em um único volume porque seria muito interessante para todos nós.

5. Como surgiu a ideia de trabalhar na tradução da Poesia Completa? Como antecipa que a tradução será recebida?

Acho que eu já respondi, mas é bom insistir nisso. Eu cheguei à conclusão que todas as antologias – e a essa altura eu já tinha lido todas as antologias, incluindo a do Augusto, a da Olívia Krahenbühl, a da Isa Mara Lando, a tradução muito boa e muito competente da Aíla de Oliveira Gomes que saiu pela EDUSP e a do José Lira, da qual eu não gosto, particularmente, por várias razões – mas todas elas me pareceram insuficientes porque a essa altura eu já vinha lendo as traduções completas da Gunhild Kübler para o alemão e a tradução completa para o espanhol (existem três traduções completas da poesia para o espanhol). Eu também já vinha lendo a tradução completa que saiu na França. Então eu comecei a perceber que é muito diferente. Em suma, eu acho que as antologias são sempre, como eu já disse antes, como colher flores: você colhe as flores e as entrega para alguém, mas não tem uma compreensão da planta. Você não tem uma compreensão do local onde a planta cresce: você não tem uma compreensão do jardim, ou do bioma. E você não tem uma compreensão da natureza como um todo, quer dizer, toda antologia é sempre uma seleção, é sempre um recorte, e eu achava que o leitor brasileiro já merecia, a essa altura do campeonato, ter uma compreensão total da obra da Emily Dickinson. Uma compreensão abrangente.

6. Para quando podemos esperar o primeiro volume? Em quais formatos ele será disponibilizado? Trará também textos críticos?

O meu projeto é a tradução da poesia completa de Emily Dickinson de acordo com a edição da Cristanne Miller. É uma edição nova que saiu em 2016 pela Harvard University Press. Nos Estados Unidos e no mundo anglófono já existem três edições completas da Emily Dickinson. As três estão disponíveis no mercado anglófono, e são também da Harvard University Press. Uma é do [Thomas H.] Johnson, dos anos 1950, que foi depois revista pelo [R. W.] Franklin nos anos 1990. O Franklin é, sem dúvida, o mais importante estudioso textual da obra da Emily Dickinson. Mas ele fez uma edição um tanto quanto complexa para o leitor não-especializado, então a Cristanne Miller elaborou uma edição que fosse ao mesmo tempo crítica, ela tem esse caráter de edição crítica do Franklin, mas também é uma edição de leitura acessível para o leitor não-especializado. Então estou seguindo essa edição.

Como é uma edição com quase 1900 poemas, e vai ser uma publicação bilíngue, eu resolvi publicar em dois volumes. Já está acertado com a editora da Universidade de Brasília, que já comprou os direitos de publicação da poesia da Emily Dickinson no Brasil graças à intervenção da diretora da editora da UnB, a Germana Henriques Pereira, a gente vai publicar isso em dois volumes. Ou seja, o primeiro volume vai ser publicado até o final deste ano, eu espero. Ele já está pronto e vai receber um tratamento editorial. Esse primeiro volume contém cerca de 800 poemas que correspondem aos fascículos da Emily Dickinson. É interessante porque vai ser a primeira vez no mundo que se publicam os 40 fascículos em um só volume. Então é um pouco uma coincidência, mas uma coincidência que eu estava meio que planejando, porque eu sabia que ia ter que dividir a obra dela no meio, e o meio da obra dela corresponde aos fascículos. Então esses fascículos são um conjunto de poemas que ela mesma organizou. E acredita-se que ela provavelmente estava pensando em uma edição. Então é isso que eu vou fazer, esse primeiro volume vai ter os 40 fascículos que vão ser publicados de maneira integral em uma edição bilíngue contendo as variantes dos poemas e também as alternativas que ela ia dando, palavras que ela ia inserindo, que ela resolvia modificar na feitura dos poemas.

Vai ser uma edição crítica porque ela traz todo um aparato histórico, textual, notas, mas também traz as referências às variantes dos poemas. O que é uma variante? Quanto a Emily Dickinson escreveu e enviou para mais de uma pessoa o mesmo poema. Saber a circulação do poema é fundamental, identificar para quem ela enviou e se alguém reteve o poema, se ela reteve um manuscrito, tudo isso é importantíssimo porque é importante lembrar que a Emily Dickinson não publicou nada em vida. Toda a obra dela é um grande manuscrito. Ou seja, ela nunca foi editada. Então cada edição da Emily Dickinson é uma primeira edição sempre a partir de um manuscrito.

Além das variantes, a gente tem também as alternativas. Por exemplo, ela escrevia um poema e de repente achava que determinada palavra não estava bem. Então ela riscava essa palavra, colocava embaixo do poema com um sinal indicativo de que aquela palavra seria substituída por outra. Ou então ela simplesmente colocava possibilidades para que um dia, se fosse ter uma versão definitiva, ela usasse aquela palavra e não a outra. Às vezes há quatro ou cinco alternativas para cada palavra no poema. Isso muda bastante o sentido dos poemas. E isso dá também ao leitor, ao editor, sobretudo, e ao tradutor a possibilidade de interpretar um poema de muitas formas. Ou seja, a fruição e no caso da Emily Dickinson, a leitura do poema é uma edição do poema e é ao mesmo tempo uma criação do poema. Ela deixou uma obra que se move, que não está acabada, uma obra que se completa no ato da leitura. Todo ato de leitura é um ato de edição e também um ato de tradução. Quem diz isso é a Marta Werner, que editou os Envelope Poems, mas que antes já havia editado um livro que eu ainda espero traduzir que foi o Open Folios, no qual ela selecionou poemas do baú da Emily Dickinson que nunca foram editados e os editou de forma mais visual.

7. Poderia explicar para o leitor um pouco sobre os processos de costura e sutura que pautaram a sua tradução da poesia de Emily Dickinson?

No artigo que publiquei na revista Remate de Males, que vai ser meu Posfácio, na verdade, eu estabeleci um princípio para apresentar a Emily Dickinson. Não só apresentar a Poesia Completa, que era um critério fundamental, e seguindo uma edição crítica, que também era fundamental, mas eu não me baseio só na Cristanne Miller. Às vezes eu preciso fazer escolhas, o tradutor precisa fazer escolhas que dizem respeito à edição do Franklin ou do Johnson. A Cristanne Miller sabe disso. Em alguns casos, considerando as variantes dos poemas, uma determinada variante é melhor para se traduzir do que a outra. Ou então eu uso critérios de tradução que dizem respeito à Variante A ou à Variante B, ou então eu uso uma alternativa A ou B, ou substituo a alternativa por uma palavra que está no manuscrito. Isso quer dizer que o primeiro trabalho que eu faço é um trabalho que eu chamo de costura, que é o de estabelecer um texto coeso do início ao fim. O que eu chamo de texto são cerca de 1800 poemas. Eu não tenho um número exato. Acho que nem a Cristanne teria o número exato de poemas. Porque tem toda essa questão das variantes e das alternativas, mas acho que está em torno de 1800 poemas. Então a costura é isso: é levar em consideração todo o trabalho da crítica, o que foi dito sobre o modo de escrever da Emily Dickinson ao longo dos anos, toda a fortuna crítica. Para estabelecer esse grande texto dos 1800 poemas, que eu chamo de Poesia Completa, que a Cris chama de Poems as She Preserved Them: “Os poemas tal como ela os preservou”. Eu acho esse título um pouco longo para o Brasil e faz mais sentido no contexto da língua inglesa também. Para nós, acho que é a Poesia Completa mesmo porque a gente nunca teve a experiência de uma Poesia Completa dela em língua portuguesa. Então esse é o trabalho de costura.

O trabalho de sutura é como se fosse o avesso disso. Este termo eu busquei da teoria cinematográfica, ele vem da teoria psicanalítica. E o que é sutura na teoria psicanalítica do Lacan? Quando você está num processo de desvelamento da subjetividade, do inconsciente, o Lacan diz que você nunca chega totalmente a esse desvelar e ele diz que o sujeito é uma imagem que bruxuleia na cadeia discursiva, que aparece e desaparece o tempo todo. Então eu acho que o sentido final dos poemas da Emily Dickinson, da obra como um todo, requer um processo de sutura. Ou seja, você não pode fechar. Se você fechar a antologia ou a tradução, ou a edição, se você deixar aquilo completamente fechado, você estará matando aquela imagem bruxuleante, aquele movimento interno da obra, entende? Então o tradutor tem que ser capaz de manter esse movimento, manter esse aspecto, digamos assim, cinematográfico, cinético, o aspecto do movimento que está presente em cada um dos textos e está presente na obra como um todo, até porque o que se discute hoje é se os poemas são mais visuais ou se são mais sonoros.

A Cristanne Miller defende que são mais sonoros, isto é, eles têm uma organização métrica pensada, mesmo que a organização visual não corresponda à organização métrica. Outras pessoas já acham que a organização visual do poema é mais importante que a organização métrico-prosódica, isso é o que defendem a Martha Nell Smith e a Marta Werner. No entanto, estou com a Cristanne Miller, acho que é possível manter uma referência à forma visual, mas colocando o poema na forma métrica e também colocando todas as alternativas e abrindo todas as alternativas para que o leitor decida o que ele quer, afinal. É preciso lembrar que quanto à forma visual, todos os poemas da Emily Dickinson estão disponíveis em forma de manuscrito no site http://emilydickinson.org. Isso significa que se o leitor quiser a forma visual, ele vai até o site, e o poema que ele está lendo na forma métrica (que é a nossa), pode ser acessado na forma visual. Assim ele pode comparar, brincar e fazer a própria edição.

O nosso dever, e eu acho que a Cristanne está certa nisso, é o de mostrar: “olha, aqui há um trímetro iâmbico, aqui há um tetrâmetro iâmbico, aqui existe uma forma métrica possível”, porque se não, o leitor não vai perceber isso e não vai entender. E se ele não quiser mesmo entender isso, ele vai direto para os manuscritos, esquece o que a gente fez e lê os manuscritos. Porque em última instância, o que interessa é isso: é ler os manuscritos. Agora, os manuscritos já estão disponíveis, o que a gente quer é uma obra em livro, uma obra editada em livro. Claro que seria legal replicar todos os manuscritos e fazer a chamada transcrição diplomática, que é uma transcrição na forma gráfico-visual original e ter ao lado também a forma métrica. No entanto, seriam uns vinte volumes, e talvez alguém ainda faça, mas não é isso que eu quero fazer. Eu quero estabelecer uma primeira edição de leitura dos poemas na forma métrica, mas também colocando as variantes e alternativas. Isso é o que eu chamo de sutura. A sutura também diz respeito ao modo como o sentido do poema nunca se fecha. E muitos poemas da Emily Dickinson não apenas são impossíveis de serem traduzidos, são impossíveis de serem lidos. Quer dizer, o leitor de língua inglesa, o especialista, como a Cristanne Miller, por exemplo, ou a Marta Werner, ou a Martha Nell Smith, não chegam a uma conclusão final sobre um determinado verso, sobre o que ela quis dizer. Não há como chegar a uma conclusão final porque ela deixa brancos, ela deixa buracos, então como você vai interpretar aquilo? Não há como interpretar. Então você tem que aceitar isso como um processo de sutura.

As Variantes: o caso “A Sparrow took a slice of Twig”

Manuscrito do poema “A Sparrow took a slice of Twig” | Crédito da imagem: Amherst College, Amherst MA

O Prof. Adalberto gentilmente permitiu que publicássemos uma de suas traduções para ilustrar o trabalho realizado com as variantes produzidas por Dickinson. Müller explicou que:

A tradução abaixo, do segundo volume da Poesia Completa, dá uma ideia do trabalho crítico de Cristanne Miller. As linhas abaixo do poema são alternativas que Emily foi acrescentando ao longo de anos.

A Sparrow took a slice of Twig *
[F1257;j1211]

Um Pardal pegou num Galho
E achou que era legal
Acho, porque a Natureza
Encheu o seu Prato frugal –

Bem revigorado – saltou leve ao céu
Como se o estribo, costumeiro –
E audaz partiu ao léu –

C. 1872

Versos 5-7 [Bem revigorado –] delicadamente Absconso – . fluentemente / O Epicuro de Cortesia . Proposto / Como se a Amenidade – . Propriedade
[Bem revigorado –] Subiu suave o céu – / Como se um estribo Familiar / Para montar a Imensidão
[Bem revigorado –] Como especulações fugindo / Por Conclusão nenhuma . Derrisão oculta / Deixou –. Subiu sub-repticiamente –
[Bem revigorado –] Virou fácil o céu / Como se o selim, familiar / E cavalgou a imensidão
v. 6-7: O Epicuro de Firamamentos / Como se a Frugalidade – . O Epicuro de Veículos / Como se, a Velocidade.
v. 7: E cavalgou a Imensidão . E calagou derrisório – . E alegre galopou

Enviado a SD (variante, c. 1872) com os versos finais: “Revigorado, cruzou / Por todo o Céu profundo / Até que sua pequena figura / Foi confiscada para longe –”.

Disposição do poema na edição de Cristanne Miller (2016)

A Sparrow took a slice of Twig
And thought it very nice
I think, because his empty Plate
Was handed Nature twice –

Invigorated fully – sprang lightly to the sky
As an accustomed stirrup –
And boldly rode away –

lines 5–7: [Invigorated fully –] Absconded daintily – • fluently / The Epicure of Courtesy
• Purposes / As of Amenity – • Propriety
[Invigorated fully –] Rose softly in the sky / As a familiar Stirrup / To mount
Immensity –
[Invigorated fully –] As speculations fl ee / By no Conclusion • Derision hindered /
Left – • Rose surreptitiously –
[Invigorated fully –] Turned easy in the sky / As a familiar saddle – / And rode
immensity
lines 6–7: The Epicure of Firmaments / As of Frugality – • The Epicure of Vehicles /
As of Velocity.
line 7: And rode Immensity • And rode deriding by – • And gaily galloped by –
c. 1872

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