Além das Palavras (2017): Por que o filme de Terence Davies é tão criticado?

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Em 2012, foi anunciado que Terence Davies (Vozes Distantes, The Long Day Closes) ia dirigir um filme focado na vida de Emily Dickinson. Após um longo período em silêncio, foi publicado em 2015 um artigo no jornal The Guardian anunciando que o projeto estava sendo levado adiante e que a estrela de Sex and the City Cynthia Nixon, estrelaria como Emily e que Jennifer Ehle estrelaria como Vinnie. As filmagens foram iniciadas em maio daquele ano, na Bélgica. Entrevistada, Nixon já demonstrava que o filme seria mais definido por uma leitura particular que Davies fez da vida de Dickinson, do que no conhecimento histórico acerca da vida da poeta, como o trecho abaixo demonstra:

Nixon, mais famosa por ter interpretado Miranda em Sex and the City disse: “Quando eu li o que o Terence escreveu, fui consumida pela personagem que ele construiu na página de forma tão bonita. As palavras de Emily Dickinson e as de Terence de alguma forma se encaixam para criar um inebriante elixir. Quando terminei de ler o roteiro, eu sabia que era uma história da qual eu simplesmente precisava participar”.

No entanto, as reações após a estreia do filme em 2017 foram bastante divididas, especialmente entre leitores e estudiosos de Dickinson.  O atual editor do Emily Dickinson Journal, James Guthrie, elogiou a leitura de Davies:

Nós assistimos e gostamos de A Quiet Passion ontem. É a versão de Terence Davies da vida de Dickinson e eu acho que ele merece ser creditado por ter levado o projeto adiante e por ter feito um filme sério e interessante. A atuação foi boa no geral, eu achei, com Cynthia Nixon fazendo um belo trabalho, apesar de eu ter gostado especialmente de Jennifer Ehle como Vinnie.

No entanto, em resposta à avaliação de Guthrie, muitos leitores e pesquisadores criticaram o que identificaram como falhas graves do filme, como a ausência absoluta de Thomas Higginson, o tom melodramático, e a falta de cuidado com eventos efetivamente biográficos em prol de uma visão fortemente ficcionalizada da vida de Dickinson (veja aqui e aqui). O filme traz, por exemplo, uma briga entre Emily e Austin, que se desenrola quando ela o flagra traindo Susan com Mabel na sala da casa da poeta. Na vida real, Emily jamais viu ou falou com Mabel Loomis Todd pessoalmente.

A respeitada estudiosa dickinsoniana Martha Nell Smith criticou o filme dizendo que ele era “sobre Terence Davies, não Emily Dickinson. Foi péssimo”. Ela também aproveitou para elogiar o filme independente Wild Nights with Emily, que focaliza o relacionamento de Emily e Susan e se baseou fortemente nas cartas da poeta. A discussão levantada por Smith no grupo da EDIS foi bastante interessante:

Martha Nell Smith: Gary, não sei bem quem está dizendo que não encontrou “sua própria ED” no filme ou por que alguém esperaria isso. O próprio Davies diz que é uma ficção, uma fantasia e que muitas coisas no filme foram inventadas. É a visão de Terence Davies sobre ED, que é um pouco mal-informada sobre “fatos”. Qualquer um que aborde o filme como uma biografia está equivocado – novamente, é a fantasia de Davies. Eu falei com ele e foi exatamente isso que ele disse. Uma visão única não é suficiente, e aqui temos outra: https://lareviewofbooks.org/article/embittered-spinster/

S. Baer: Davies está simplesmente explorando (em termos de reconhecimento, não imagino que seja lucrativo financeiramente) o nome dela. Essa história poderia ser sobre uma mulher fictícia. Se ele quer contar essa história, tudo bem. Faça isso. Mas usar o nome dela para atrair espectadores é, na melhor das hipóteses, insincero. Na pior, antiético.

L. Riegel: Um filme é uma obra de arte. Quando eu critico arte, eu tenho fazer isso avaliando unicamente o seu sucesso enquanto arte. Minha crítica tem somente o peso da minha própria visão. E é subjetivo. Como a própria arte. Enquanto arte, a visão de Terence Davies tem muitos momentos e performances interessantes, o filme, pra mim, foi um grande sucesso e interessante de assistir. Mas é ficção, não é fato.

MNS: Lenore, sim, e o próprio diretor diz que é ficção e não fato. Não é um documentário, é fantasia.

S. Baer: Martha, então ele deveria usar um personagem fictício, não um real. Que crie uma pessoa nova (como fizeram com a jovem amiga dela). Não pegue as coisas que nós sabemos e as ignore, ou pior, as altere. E pelo amor de deus, se vai usar um poema, use o poema inteiro! Ficção é ficção. Quando eu dou aula de escrita criativa para universitários, eu deixo bem claro que quando você escreve ficção histórica, a história precisa estar correta. Quando você erra nisso, você perde os leitores. Se você quer escrever uma completa fantasia, vai nessa! Faça isso. Ótimo. Mas ficção histórica é intrinsecamente diferente. Ele queria o reconhecimento do nome dela e se aproveitou isso.

MNS: Sylvia, é definitivamente ficção, e muitas das questões que você levanta são muito boas. É muito importante que o público saiba que é a fantasia dele.

Talvez a escolha mais problemática e inexplicável de Davies seja, efetivamente, a substituição da relação de Dickinson e Susan por uma amizade ficcional com Vryling Buffum. Embora Jonnie Guerra afirme em sua resenha do filme publicada no EDJ que Buffum é uma personagem inteiramente fictícia, ela de fato existiu, mas não como Davies a retrata. Aliando esta questão à de se Além das Palavras pode ser considerado um bom filme de um ponto de vista estritamente cinematográfico, transcrevo dois trechos da resenha de Richard Brody publicada na The New Yorker:

A Dickinson de Davies é muito engraçada – e na realidade, a Dickinson verdadeira era, de fato, engraçada, como a leitura das cartas dela comprova. Há quase tanta extravagância surrealista na sua voz em prosa quanto na sua poesia, a qual Nixon oferece uma cadência fantasiosa que trata a linguagem da escritora, com seu estilo e pontuação únicos, como se fosse uma trilha musical. Todos os filmes de Davies são repletos de música, mas em Além das Palavras ele eleva a musicalidade cinemática a um novo nível. A música especial do filme é a dos poemas de Dickinson, que são ouvidos ao longo da trama em recitações de Nixon que capturam o brilho das fúrias internas que se avolumam nas superfícies planas dos poemas e os belos ritmos da hinódia.

Eu assisti – e amei – Além das Palavras à primeira vista no Berlin Film Festival em fevereiro de 2016, antes de ter lido sequer uma carta de Dickinson, e eu nunca li uma biografia dela, só a poesia. Os únicos fatos que eu tinha em mãos antes de assistir ao filme eram os mais gerais sobre a solidão dela, a frustração romântica, as poucas publicações, a semi-reclusão na casa da família em Amherst: coisa de enciclopédia. Eu sabia, como todo mundo sabe, da amizade próxima dela com a cunhada, Susan Gilbert (interpretada no filme por Jodhi May); mas em Além das Palavras este relacionamento, embora crucial (porque é centrado em assuntos íntimos), é secundário, intelectualmente, em relação à amizade com Vryling, um nome bem menos familiar para espectadores com um conhecimento limitado acerca da poeta. Acontece que Vryling é real – e não é. Vryling Buffum, aparentemente uma eterna nota de rodapé, era amiga da irmã de Emily, Vinnie (que é interpretada no filme por Jennifer Ehle). Davies expandiu o seu papel significativamente e a tornou uma presença importante, se breve, na vida de Emily. Apesar de Além das Palavras ter sido altamente elogiado por críticos, o diálogo de comédia perversamente epigramático de Davies para Emily e Vryling é o principal aspecto do filme que mesmo muitos dos admiradores do filme destacaram para criticar. Apesar de nenhuma resenha que eu li ter feito objeção à ficcionalização de Vryling Buffum ou à amizade, críticas à amizade estão inevitavelmente atreladas às liberdades dramáticas que Davies exercita no seu retrato. Nele, tanto Emily quanto Davies são extremamente livres e ousados. Nele, tanto o cineasta quanto a protagonista se rebelam de forma notável contra os costumes de seu tempo e meio social.

A avaliação do filme no Rotten Tomatoes é, de fato, excelente no que toca a crítica profissional. O filme é certified fresh com 91% no “tomatômetro”. As avaliações do público, no entanto, são significativamente mais negativas, com uma pontuação média de 49%. O que pode motivar esse contraste entre a visão que os críticos tiveram do filme e a visão dos expectadores?

Eu só posso responder a partir do meu próprio ponto de vista enquanto expectadora que já era leitora e pesquisadora da obra de Dickinson quando assisti ao filme. A meu ver, a questão da inserção e ficcionalização de Vryling Buffum e substituição da amizade de Emily e Susan por esta relação está, eu diria, relacionada à intenção clara de Davies de apresentar Dickinson como uma personagem palatável para a geração millenial, adaptando a sua personagens para incorporar valores contemporâneos. Esse esforço é problemático já em sua gênese, porque a personagem resta pouco crível mesmo no universo em que se insere. As reações e visões de Dickinson no que toca religião e gênero foram livremente adaptadas por Davies para conformá-la a um molde de protofeminismo ideal sob a visão que o século XXI faz do movimento. O que me incomoda, pessoalmente (mais do que desvios que descaracterizam Dickinson, embora de fato talvez fosse mais interessante assumir que trata-se de uma personagem inteiramente fictícia) é que essas transposições não parecem ter sido feitas de forma consistente e torna-se difícil encarar a Dickinson de Davies como uma personagem complexa e interessante. Ela não se parece com Dickinson e nem com qualquer noção de uma mulher americana oitocentista que possamos fazer, por mais que Nixon se esforce no que toca a sua atuação. Como Brody ressalta, críticos de cinema também se incomodaram com a inconsistência. Os anacronismos inerentes ao comportamento da Dickinson de Davies me impossibilitaram de mergulhar na narrativa mesmo enquanto exercício ficcional e, neste ponto, descordo do resenhista da The New Yorker:

Davies não parece conseguir se decidir quanto a quem, precisamente, é a personagem que protagoniza seu filme e, desta forma, torna-se difícil mantermos-nos interessados. O esforço do diretor não é, a meu ver, uma mostra de ousadia ou de liberdade no que toca as convenções do seu – do nosso – tempo, como Brody sugere. A falha de Davies reside, precisamente, no fato de tentar adequar sua Dickinson ao gosto contemporâneo, apagando complexidades – religiosas, filosóficas, sociais – que poderiam empolgar o expectador não-conhecedor da biografia da poeta. Ademais, o diretor aliena aqueles de nós que gostariam de reconhecer ao menos alguns dos principais rastros da passagem de Dickinson por este mundo (ela dá nome ao filme, afinal!), como o relacionamento epistolar com Higginson, seu grande amigo e mentor. Além das Palavras falha justamente por tentar agradar demais, quando somos nós, a plateia, que precisamos estar preparados para ajustar nosso olhar para mergulhar em histórias – fictícias ou não – e narrativas que transcorrem em contextos diferentes do nosso. No caso de Dickinson, especialmente, é preciso que saiamos da zona de conforto para nos engajarmos com sua obra: seus poemas exigem isso de nós. O filme de Davies, por sua vez, se distancia da poeta em seu esforço para entregar tudo pronto, simplificando e dividindo os personagens em categorias simples de bons ou maus, rebeldes ou conformistas. Dito isso, considero uma pena que o esforço do diretor não tenha sido, a meu ver, bem-sucedido, vez que trabalhos como este podem ajudar um público mais amplo a se interessar pela obra de Dickinson e a manter sua memória viva e sempre renovada.

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